Então aqui vai o forçoso reparo : Estou no cerne do mundo , viajar não cansa . O desejo é um arco e eu vivo alto , longe do chão . Esta tarde viajei quatrocentos quilómetros de moto , desde Casablanca até à cidade de Marraquexe . Trazia este capricho escondido desde Puerto Montt , numa tarde de Dezembro chileno , em que vi numa barcaça os viajantes que se metiam pela estrada austral com as suas montadas de metal . Estou pois aonde me trouxe o coração , uma outra vez , nada tenho a lamentar . A senhora do frio lá estava na estrada , na desembocadura de uma curva , bem a vi de perto num velho Mercedes que saiu detrás de um camião . Assustou-me . À noite . liguei para os filhos . O João leu-me ao telefone a carta que me escreveu por ocasião do dia do pai , tão pungente e bonita que a hei-de trazer para cá ( que pena crescermos com tanta pressa : a nobreza está nos ingénuos ) . Tenho medo de esquecer o que estou a viver – e guardo os pequenos pormenores que tendem a desaparecer , factos putativamente literários a necessitar de considerado desenvolvimento , num qualquer outro futuro . 1. Há uma curva da estrada , antes de chegar a Odemira , com cheiro a morangos . Um velho tractor agrícola , carregava a colheita do dia . Podia-se conduzir a estrada toda – a tarde toda - de olhos fechados atrás daqueles morangos frescos – como se fosse um ratatouille . Num outro lugar , mais ao sul - perto de Ronda – vêem-se antiquíssimos pastos e herdades .Um grupo de peões estava sentado em cima da vedação de um picadeiro e gritavam aos que no círculo domavam os poldros e traziam o gado . Ouvia-se claramente enquanto passava – o estalido do chicote e o fremir dos animais . São cheiros e sons e paisagens estas diferentes das viagens de carro , talvez venha daí a magia de viajar de moto , exposto numa precária sensação de sentidos e liberdade . 2. A Alhambra de Granada é mais bela do que a tinha alguma vez sonhado . Mas nada na Andaluzia ainda superou o espanto e a beleza das calçadas de Córdoba . 3. A ponte velha de Ronda e o seu escarpado casario eram mais altos também do que me tinha dito a imaginação . Ronda é formosa . Hemingway escreveu que não existe outro lugar em toda a Espanha para se assistir a uma tourada , a que se faz aqui tem a mesma sumptuosidade nos trajes e na gala que põem os venezianos no Carnaval . Chamam-lhe a tourada Goyesca e era suposto ter vindo em Setembro para a apreciar . Por sorte é Março , Hemingway nunca me foi preferido e não gosto de toiradas , acho aviltante desafiar um animal tão nobre em tamanha circunstãncia de desigualdade . Porém vale a pena visitar o recinto e o chão de areia e imaginar a multidão a gritar com júbilo ou medo , a banda filarmónica a ajudar a faena com um paso doble – e também uma visita ao museu de tauromaquia , sob as arcadas – espanto de imaginar os meninos toureiros e seus fatos de lantejoula e oiro a fintar o enorme minotauro . 4. Vi numa praça em Tânger uma menina que era uma gota de água de outra criança que eu conheci e por quem me afeicoei , lá no Rio Grande do Sul . Foi num relance . Fiquei tão surpreendido pela parecença – era o Erico apenas com outro género e o nome arábico , certamente - que quando recuperei do espanto e peguei na máquina fotográfica – a criança tinha desaparecido . Mas foi noutra rua , em Marraquexe , no soukh dos tanoeiros que eu perdi o retrato melhor : um menino carregava nos braços um enorme prato em estanho polido , desses que se usam nos casamentos árabes para dispor a comida aos convivas . O sol batia no prato e reflectia-lhe no rosto numa luz tão feita de oiro , que todo ele era um pequeno rei Midas . Tudo isto foi num tal ápice que só no coração ficou a lembrança e a ocasião . 5. Mil outras coisas tornam este país literário : os homens sentados à beira das estradas e nos descampados , sozinhos , como se esperassem alguma coisa - uma súbita epifania . Tanto suposto ócio estranha a um ocidental , acostumado a vê-lo escondido sob mil outras maneiras que não a mais simples : ser contemplativo . Também os poços de água na beira do deserto , como formigueiros gigantes , feitos no cimo de um enorme fosso de barro onde puseram o balde e a roldana , foi preciso vê-los de facto para entender as aguarelas do St Exupery e a cor perene que é a amarela . E os soukhs , as ruas estreitas de mercadores, o cheiro das especiarias e da imundície , os gatos sem dono , o fervilhar da vida dentro das centenárias medinas num imenso pulsar do mundo . A comida enfeitada com tâmaras e grãos-de-sésamo , a chamada dos fieis à oração desde o cimo das mesquitas . 6. Depois há as grandes montanhas , com gargantas profundas , paisagens lunares que um dia ouvi descrever num outro lado do mundo , a pedra vermelha e retorcida a contrastar com o céu aberto e a neve e pequenas aldeias pintadas de azul . Terra de pastores e crianças , pobreza sim mas muita dignidade , gente que traz os filhos pelas mãos como se fossem tesouros que são , terra primordial e simples : África , lugar aonde eu nasci . Outra razão mais para tanta literalidade , este foi o meu país também . Paro aqui para ir viver o resto que imaginei . Adivinho que escreverei mais , depois , forçosamente já desde um outro lugar , numa outra admiração . ( S.T. , In Os diários de Rapa Nuï , todos os direitos reservados .)
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