Todas as viagens são diferentes e todas se prestam a ser contadas de forma diferente. Não sou muito adepto de fazer relatos em jeito de jornal diário e prefiro normalmente organizar as ideias de viagens segundo outras lógicas, mas neste caso parece-me apropriado, de modo que vamos a isto.
Dia 1: Bragança – (proximidade de) Estella - 628 KmsA partida foi pouco ortodoxa, como são normalmente as minhas partidas. O passeio deste Verão foi “entalado” entre duas obrigações musicais: dois concertos acordados com a banda rock de que faço parte. Um na concentração motard de Bragança, outro nas festas da cidade.
Eram umas 3 da manhã quando cheguei a casa, vindo do concerto. Cansado, sabia no entanto que já dificilmente conseguiria dormir. Fui ao sofá onde havia espalhado todos os itens de que me lembrava ao longo dos últimos dias , juntei algumas coisas que, de cabeça, vi que faltavam, fui buscar as malas e o saco impermeável à garagem e comecei a enchê-los sem grandes pressas.
Pelas 5 e meia, ainda a noite era escura, depois das habituais “fitas” a pegar de kick (não há arranque eléctrico) a Suzuki 350 saiu da garagem, rumo a leste. Fazia frio. O céu não tardou a aclarar-se, poucos quilómetros depois, mostrando as nuvens escuras e carregadas em quase todas as direcções. Caíram os primeiros pingos na estrada e tive de usar todos os meus agasalhos da minha bagagem. Optei, claro, por estradas sempre secundárias. Num mapa da Michelin, são as estradas amarelinhas e brancas, que muitas vezes têm excelente piso e reduzido tráfego. Montado numa moto que não é rápida, é mais interessante e relaxante. A meteorologia anunciava a entrada de uma frente em Portugal, vinda de noroeste, como é hábito. Ia a fugir dessa frente que trazia chuva. O tempo foi gradualmente melhorando, enquanto percorria essas estradas até à zona de Palencia, Burgos, sem história.
O único ponto que merece referência, pelo caminho, e que já visitei duas vezes (fica à distância de um passeio domingueiro desde Bragança), são as Lagunas de Villafafila, a norte de Zamora. Desta vez não visitei e passei apenas bem perto. Estas lagoas estão ligadas à bem antiga exploração de sal na zona e são um dos mais importantes pousos e pontos de passagem de aves migratórias na Europa. Ali se pode encontrar, entre outros, a maior população de abetardas do mundo, estimada em 5000 exemplares. À possibilidade de observação de milhares de aves, junta-se um centro de interpretação e uma interessante visita às ruínas da exploração salina, na população próxima de Otero de Sariegos. É um local que recomendo para uma visita e por isso vos deixo a dica. Mais informações em
http://www.villafafila.com/ .
Um mapa que ajuda a localizar as lagoas:

Não sei como é convosco, mas o meu primeiro dia de viagem é sempre estranho. O corpo segue em cima da moto, mas a cabeça está noutro lado. É difícil desligar de uma certa rotina de trabalho, de semanas, meses a fio de vida sedentária. Ainda me pergunto o que estou ali a fazer e os pensamentos ainda resvalam para essa vida que abandonei temporariamente apenas há algumas horas. É só no segundo ou terceiro dia que me deixo embalar pelo ritmo e interrompo mentalmente o ciclo: estrada, paisagens, parar e comer onde e às horas que me apetecer, visitar o que dá na gana, não saber onde vou fazer a minha cama nessa noite.
Naquela “onda” de ser autónomo, levava comigo uma pequena despensa e fui fazendo pequenas paragens para pequeno-almoço e um curto snack. Pela hora “normal” de almoço, o cansaço e sono da “directa” invadiu-me finalmente. Saí da estrada de pouco tráfego numa pequena povoação adormecida, e nas traseiras da igreja, em local ermo e sossegado, a mochila foi a minha almofada por uma ou duas horas. Foi um curto mas retemperador e bem necessário sono.
Depois foram mais quilómetros de planície e paisagens de campos cultivados. Em Espanha, as terras não foram definitivamente abandonadas! Uma das culturas mais visíveis, abundantes e visualmente graciosas é a do girassol.


Não me canso de admirar estes campos coloridos. Mas o interesse da cultura do girassol é muito mais do que estético, claro. Trata-se de uma cultura muito resistente e adaptável ao clima, que se dá numa ampla gama de temperaturas, resistindo bem ao frio e à seca. Não requer cuidados especias e a cultura é total ou parcialmente mecanizável. É essencialmente usada para produzir óleo de girassol, mas as sementes também são usadas como alimento para os pássaros e produção de biodiesel. Das flores pode ser extraído mel. Tudo no girassol se aproveita, até as hastes. Uma bela plantinha! Não admira que seja tão frequente nos campos que atravessei.


Aproveito estas imagens para explicar de que se compõe a bagagem. À frente, ao meio, o pequeno chouriço contém a tenda de 2 camadas e umas xanatas de campismo. De lado, na grelha frontal, vão alguns mantimentos (bebidas, pão, material para sandochas, fruta, conservas), um pequeno fogão a gás e um kit básico de louça de campismo, para além do indispensável papel higiénico. Vão em dois alforges, normalmente usados na parte frontal das bicicletas, e vão presos à grelha dianteira. Nas pequenas malas laterais vão kits de ferramentas, câmaras de ar suplentes, um mini-compressor, um kit de reparação de câmaras de ar, um pc portátil, uma câmara fotográfica reflex que nunca utilizei na viagem (as fotos foram todas tiradas com uma compacta), alguma roupa. No saco impermeável segue mais alguma roupa, os “ferros” da tenda, guias e mapas, o colchão e saco-cama, um saco cheio de carregadores para o equipamento electrónico, um pac safe, para o caso de ser necessário (nunca foi usado). Muito por culpa da falta de treino de uma certa vida nómada, acabo por levar sempre algo a mais do que preciso na bagagem (e a reflex foi o meu grande arrependimento), mas cada vez acerto melhor no estritamente necessário.
Pouco depois da soneca, paragem nesta barragem para um snack.



Se às 3 da manhã estava em Bragança a fazer as malas, às 3 da tarde encontrava este sinal. Nada mau, pequena 350.

Esta região do sul do País Basco, La Rioja, a oeste de Logroño, é afamada pelos seus vinhos. A paisagem era de vinha e as “bodegas” sucedem-se. Por isso foi sem espanto que na povoação de Elciego encontro algo que conhecemos bem do nosso país: a hotelaria e o vinho de mãos dadas.
Vinhas em Elciego:


Elciego e a bodega:


O Hotel de luxo Marquês de Riscal é apenas uma das vertentes da empresa dos herdeiros do Marquês – com uma arquitectura especial. Se quiserem saber pormenores...
http://www.marquesderiscal.com/index.php?idmenu=60&mn1=3

Admirei o futurismo das linhas do hotel, percorri o “casco histórico”...

… e continuei viagem para leste, na direcção de Pamplona. Não tinha intenção de entrar em cidades grandes. Em contrapartida tinha interesse em percorrer reservas e parques naturais que ainda não conhecia. E o país basco era uma incógnita para mim.
A paisagem dividia-se entre vinha a os primeiros sinais das montanhas.

Com a montanha voltou o tempo instável. Deleitei-me com estradas de amplas vistas no sopé destes montes e, já no fim da tarde, encontrei uma povoação chamada Estella, já não longe de Pamplona. Para norte fica uma área natural que merecia algum tempo e uma disposição mais fresca do que a que tinha, depois dos 600 kms percorridos. Não queiram saber como é o banco da Suzuki.... E como a chuva estava eminente, era tempo de procurar local para assentar acampamento. Para não entrar a “matar” no camping selvagem, procurei o camping municipal de Estella. Passei à porta e fiquei horrorizado: cheio como um ovo, muita gente. Não gostei. Queria algo mais natural. Avancei alguns quilómetros para norte onde sabia que existia outro camping. Cheguei à porta. Era de 1ª e tinha bom aspecto, mas qual não foi a minha supresa quando a guapa ao balcão me diz que estava cheio. É difícil de acreditar que não houvesse espacinho para mais uma pequena tenda, mas enrolei o rabinho entre as pernas e preparei-me mentalmente para a primeira noite à la belle étoile. E com chuva, ao que tudo fazia crer. Assim foi. Devíamos estar demasiado próximos de Pamplona e a cidade estava por ali toda a fazer férias.
Sob uma chuva muidinha e um tempo a ameaçar piorar, procurei um local por onde me enfiar e plantar uma tenda. À esquerda, uma central hidroeléctrica desctivada. Mas o terreno estava fechado a cadeado e um cão assegurava que não restassem dúvidas. Um pouco mais adiante, uma rampa em terra batida, com um pedrugulho a tapar parcialmente a entrada íngreme. Para uma moto trail não é um problema. Subo, encontro uma espécie de posto de entrada, com tudo queimado. Subo mais um pouco. O local parece ter sido habitado anteriormente, mas está abandonado. Uma caixa de correio sinistra destaca-se entre a vegetação e o silêncio total. Estava-se bem, não me viam da estrada, e não havia vestígios de passagem recente de gente nem de gado.
É sempre estranha, a primeira noite sozinho num sítio desconhecido. Apresso-me a montar a tenda, antes que chova mais. Estava muito vento, que de resto tinha soprado todo o dia, mas o local onde estou é abrigado. Ouço ao longe, em baixo, os carros. Depois da noite anterior sem pregar olho, o colchão de campismo sabe-me a um colchão Molaflex. Estou a vadiar, caraças. Ainda não me encontrei, ainda não estou no ritmo, mas já cá ando. Não tardo a adormecer.